O Ritual (2025): Quando a Fé Encontra o Abismo do Clichê


Dirigido por David Midell, O Ritual (2025) prometia reinventar o cinema de possessão ao revisitar o célebre exorcismo de Anna Ecklund (1928). Porém, o filme se perde entre a ambição temática e a execução burocrática, resultando numa experiência que desperdiça seu elenco e potencial histórico. Prepare-se para uma análise que desvenda por que este thriller espiritual tropeça em seus próprios rituais.


A Narrativa: Promessa Histórica vs. Roteiro Previsível

o-ritual

O Ritual se propõe a ser mais do que um simples filme de terror; ele busca uma profundidade que o eleve acima dos clichês do gênero. A premissa, centrada em dois padres com passados e crenças distintas que se unem para realizar um exorcismo, é, em si, intrigante. A narrativa tenta construir uma atmosfera de tensão psicológica, explorando a dúvida e o desespero que permeiam a fé em momentos de crise extrema. No entanto, é aqui que o filme encontra seus maiores desafios.

Virtudes Narrativas

A maior virtude da narrativa reside na sua coragem de abordar temas complexos como a crise de fé e a luta interna entre o bem e o mal, sem recorrer a sustos baratos em excesso. Há momentos em que o roteiro, assinado por David Midell e Enrico Natale, consegue criar diálogos que ressoam com uma autenticidade palpável, especialmente nas discussões teológicas e existenciais entre os personagens. A tentativa de humanizar os padres, mostrando suas vulnerabilidades e conflitos pessoais, é um ponto forte que, em teoria, deveria aprofundar a conexão do público com a história. A inspiração em eventos reais, embora não detalhada explicitamente no filme, confere um peso adicional à trama, sugerindo uma camada de veracidade que poderia ter sido mais explorada.

Defeitos Narrativos

Infelizmente, a execução da narrativa nem sempre corresponde à sua ambição. O ritmo do filme é, por vezes, inconsistente, com passagens que se arrastam e outras que parecem apressadas, comprometendo a imersão. A construção da tensão, que deveria ser gradual e sufocante, é frequentemente interrompida por escolhas de edição ou sequências que não contribuem para o avanço da trama. Um exemplo notável é a forma como o desenvolvimento da possuída é tratado; em vez de um mergulho aprofundado na sua deterioração física e mental, o filme opta por uma representação que, por vezes, beira o caricato, diminuindo o impacto do horror. Além disso, algumas subtramas parecem subdesenvolvidas ou abandonadas, deixando pontas soltas que frustram a experiência do espectador. A resolução, embora tente ser impactante, acaba por ser previsível, diluindo a força de uma história que tinha potencial para ser verdadeiramente perturbadora.


Elenco e Atuações: Talentos Aprisionados

o ritual

Al Pacino (Padre Theophilus Riesinger)

Al Pacino, no papel do padre mais experiente e cético, entrega uma performance que é um lembrete do seu talento inegável. Ele traz uma gravidade e uma sabedoria cansada ao personagem, cujas dúvidas sobre a fé são tão convincentes quanto sua determinação em enfrentar o mal. Há uma cena em particular, onde seu personagem confronta o possuído com uma mistura de compaixão e fúria, que se destaca como um dos pontos altos do filme. Sua presença em tela é magnética, e ele consegue transmitir a complexidade de um homem que já viu demais e ainda assim se recusa a desistir.

Dan Stevens (Padre Joseph Steiger)

Dan Stevens, interpretando o padre mais jovem e idealista, é o contraponto perfeito para Pacino. Ele personifica a inocência e a esperança que são gradualmente corroídas pela escuridão que ele enfrenta. Stevens consegue transmitir a vulnerabilidade e o medo do personagem de forma autêntica, fazendo com que o público se conecte com sua jornada de provação. A evolução de seu personagem, de um sacerdote confiante para um homem atormentado por suas experiências, é um arco bem construído, e Stevens o executa com maestria, especialmente nas cenas de maior intensidade emocional.

Abigail Cowen (Emma Schmidt)

Cowen mergulha com coragem admirável na degradação física: suas contorções ósseas, fala em siríaco arcaico e feridas necrosadas exigem dedicação física extraordinária. A tragédia reside no tratamento reducionista da personagem – transformada em mero objeto de horror, sem backstory ou humanização pré-possessão que permitisse ao público conectar-se com sua humanidade perdida. A possessão torna-se espetáculo vazio quando desprovida de contexto emocional.

Ashley Greene (Irmã Rose)

Greene interpreta a freira assistente com sobriedade digna, mas duas escolhas catastróficas sabotam sua performance: primeiro, as interferências estéticas – seu rosto imobilizado por procedimentos cosméticos modernos destrói a ilusão histórica, criando anacronismo visual gritante. Segundo, a subtrama abortada – as insinuações de possível romance com Steiger são introduzidas com sutileza apenas para serem abandonadas como lixo narrativo, desperdiçando a química palpável com Stevens.

Figurantes Notáveis

Patricia Heaton como Madre Superiora traz autoridade glacial em suas poucas cenas, mas sua presença lembra constantemente o potencial não explorado. María Camila Giraldo como noviça adiciona nuance valiosa ao questionar os métodos da Igreja, numa cena cortada abruptamente que simboliza o desperdício criativo do projeto.


Direção e Fotografia: O Pecado Capital da Incoerência

o-ritual

Os Erros Técnicos Fatais

A síndrome da câmera trêmula transforma momentos cruciais em experiências nauseantes: planos sequência que pretendiam “imersão” degeneram em caos visual durante o ápice do exorcismo, recebendo críticas unânimes por distrair em vez de envolver. A iluminação contraditória revela outra falha estrutural – enquanto as cenas de ritual usam sombras profundas que evocam A Profecia, os diálogos teológicos são filmados com luz plana de novela barata, destruindo a atmosfera construída a custo. A edição esquizofrênica completa o triunvirato do fracasso: cortes bruscos interrompem sistematicamente momentos de tensão, como quando Emma se contorce, pulando inexplicavelmente para um close-up que parece pertencer a outro filme.

As Raras Virtudes

O design de produção emerge como herói não celebrado: manuscritos de exorcismo com iconografia barroca autêntica e trajes clericais meticulosamente pesquisados recriam os anos 1920 com precisão museológica. A trilha sonora constitui o único elemento genuinamente perturbador – sua mescla de cantos gregorianos com infra-sons de 9Hz (frequência cientificamente comprovada para induzir ansiedade) cria desconforto visceral que o roteiro nunca alcança.

A cena emblemática do fracasso técnico ocorre quando o demônio manifesta-se, a combinação de CGI rudimentar, iluminação excessiva e enquadramento caótico reduz o momento mais aguardado a uma piada involuntária, transformando o sobrenatural em caricatura.


Contexto Temático: A Batalha que Nunca Acontece

o-ritual

Fé vs. Razão: Diálogo de Surdos

O Ritual se aprofunda em um terreno temático rico, explorando a complexa interação entre poder, moralidade, tradição e modernidade. O filme não se limita a ser uma história de terror sobrenatural; ele utiliza o exorcismo como uma lente para examinar questões mais amplas sobre a natureza da fé, a existência do mal e a capacidade humana de resistir à escuridão.

A Igreja como Antagonista Inexplorado

O tema do poder é multifacetado em O Ritual. Há o poder inerente à fé e à crença, que se manifesta na capacidade dos padres de confrontar o demônio. No entanto, o filme também explora o poder corruptor do mal, que não apenas possui o corpo, mas também tenta minar a mente e o espírito dos que o enfrentam. A luta pelo poder não é apenas física, mas também uma batalha de vontades e convicções. O filme sugere que o verdadeiro poder não reside na imposição de dogmas, mas na força interior e na resiliência diante da adversidade. A hierarquia da Igreja, com seu poder institucional, também é sutilmente abordada, mostrando como a burocracia e o ceticismo podem, por vezes, atrapalhar a ação direta contra o mal.

Possessão como Trauma: A Tese Ignorada

O elemento mais revoltante do desperdício temático reside no tratamento do passado de Emma: histórias reais indicam que Anna Ecklund sofreu abusos paternos na infância, sugerindo que a “possessão” poderia ser manifestação psicosomática de trauma não resolvido. O filme levanta esta hipótese com nuance promissora, apenas para desqualificá-la com pirotecnia sobrenatural barata, traindo não só o material fonte mas qualquer espectador que buscasse profundidade psicológica.


O Ritual do Desperdício

O Ritual permanece como monumento ao potencial não realizado, uma obra que encapsula contradições frustrantes: exibe atuações competentes de um bom elenco aprisionadas em personagens unidimensionais, investe em precisão histórica meticulosa apenas para servir clichês gastos do gênero, e evoca questões profundas sobre fé e razão para respondê-las com placebos narrativos. Com seus 98 minutos de duração, o filme consome tempo e atenção sem oferecer recompensa proporcional, transformando um dos casos mais documentados de exorcismo do século XX – o verdadeiro drama de Anna Ecklund – em exercício de superficialidade.

Os números falam por si: um orçamento de US$ 32 milhões desperdiçado numa bilheteria pífia de US$ 3.2 milhões, avaliações devastadoras de 4.5/10 no IMDb e 9% no Rotten Tomatoes, e cenas técnicas que serão estudadas em aulas de cinema como “o que não fazer”. Esta produção falha fundamentalmente em conjurar qualquer magia duradoura, contentando-se em repetir fórmulas caducas sem entendê-las.

Apesar de momentos isolados de competência – principalmente nas atuações de Pacino e Cowen, e no admirável trabalho de produção de época – o veredito permanece implacável: O Ritual merece ser visto apenas como estudo de caso sobre como desperdiçar recursos criativos extraordinários. Para qualquer outro propósito, revisitamos O Exorcista (1973) pela profundidade psicológica, ou A Profecia (1976) pela atmosfera sobrenatural, obras que entendiam que o verdadeiro horror reside não em sustos baratos, mas na inquietante percepção de que o abismo mais profundo está dentro da alma humana – lição que este ritual mal concebido nunca aprendeu.

E aí, o que achou do Review? Já assistiu O Ritual? Compartilhe nos comentários!

Deixe um comentário