Em Coração de Lutador (The Smashing Machine), o diretor Benny Safdie não entrega o filme de lutas triunfalista que o público de Dwayne Johnson poderia esperar. Em vez de glorificar o esporte, Safdie usa o universo brutal do MMA como palco para uma dissecação profunda e desconfortável de um colosso em frangalhos. O longa-metragem, que já rendeu a Safdie o Leão de Prata de Melhor Direção em Veneza, é um estudo de personagem claustrofóbico que acompanha a queda livre física e emocional do lendário lutador Mark Kerr. A obra troca os holofotes do octógono pela penumbra dos vestiários e a desordem de uma vida doméstica em colapso, focando não nas vitórias, mas nos vazios que elas deixam para trás. É um filme sobre o que acontece quando a “máquina de destruir” volta para casa e precisa enfrentar seu operador.
Trama e Contexto: A Ascensão e Queda de um Titã
A narrativa se concentra em um recorte temporal crucial da vida de Mark Kerr, entre 1997 e 2000, período que engloba seu auge em organizações como o UFC e o Pride. No entanto, Safdie praticamente ignora a estrutura convencional de “ascensão, queda e redenção”. A queda aqui é o ponto de partida, e a redenção, quando existe, é ambígua e cheia de recaídas. A trama tece uma teia complexa em torno de três pilares: a dependência química de Kerr em opioides para suportar a dor física e, talvez, a emocional; seu relacionamento tempestuoso e tóxico com Dawn Staples (Emily Blunt); e a pressão insustentável de manter uma imagem de invencibilidade enquanto a realidade interna desmorona. O filme se recusa a dar respostas fáceis, transitando de forma suave e por vezes desorientadora entre os dramas, sem se prender a nenhum deles por tempo suficiente para oferecer uma resolução catártica. Essa é justamente a sua intenção: espelhar a fragmentação e a falta de foco que definem a existência do protagonista.
Virtudes e Defeitos da Narrativa
A narrativa de Coração de Lutador é seu maior trunfo e, paradoxalmente, sua principal armadilha. A abordagem de Safdie é ousada ao abandonar o espetáculo e se firmar como um drama doméstico de altíssima tensão. A opção por um ritmo paciente e introspectivo, mais próximo do cinema independente, permite que o espectador seja inundado pela atmosfera de angústia e vazio que consome Kerr. Cenas longas nos vestiários, discussões conjugais que começam com um beijo e terminam em quebra-quebra, e a recusa em glamourizar as lutas – filmadas com cortes bruscos e uma câmera que frequentemente se recusa a celebrar a violência – criam uma textura crua e documental que é envolvente em sua autenticidade.
No entanto, essa mesma opção narrativa resulta em um filme que muitos podem achar arrastado e sem direção clara. A trama, de fato, parece começar em lugar nenhum e terminar em lugar algum, um reflexo deliberado da vida real, mas que no cinema pode soar como uma falta de arco dramático satisfatório. A atenção dividida entre o vício, o relacionamento e a carreira impede que qualquer um desses elementos seja explorado em toda a sua profundidade, criando uma sensação de superficialidade justamente onde se prometia um mergulho profundo. O maior pecado da narrativa, para alguns, será não conseguir justificar convincentemente por que a história de Mark Kerr merecia ser contada, além de ser um veículo para uma atuação excepcional.
Elenco e Atuações: O Nocaute da Metamorfose
É no elenco que Coração de Lutador encontra sua força absoluta, com performances que transcendem o cinema e se tornam quase uma incorporação física.
Dwayne Johnson como Mark Kerr: Esta é, inquestionavelmente, a performance da carreira de Dwayne Johnson. Longe do carisma habitual que o consagrou, ele desaparece por trás de próteses e uma postura física que beira o tragicômico. Seu Kerr é um titã com pés de barro, de voz suave e olhar cansado, cuja fragilidade emocional cria um contraste pungente com sua monumental estrutura física. Johnson captura com maestria a melancolia, a vulnerabilidade e a quietude de um homem perdido em seus próprios demônios, entregando uma atuação contida e poderosa que legitima todas as conversas sobre uma indicação ao Oscar.
Emily Blunt como Dawn Staples: Blunt complementa Johnson com uma atuação de igual intensidade. Sua Dawn não é uma simples coadjuvante, mas um furacão que tanto tenta salvar Kerr quanto parece sugar o pouco de ar que lhe resta. A atriz consegue transmitir uma gama complexa de emoções – amor, frustração, preocupação genuína e uma certa dependência tóxica – que impede a personagem de cair no lugar-comum da “mulher problemática”. A química entre os dois é eletrizante, transformando cenas domésticas banais em campos de batalha emocional.
Ryan Bader e o Elenco de Apoio: Ryan Bader, como o amigo e também lutador Mark Coleman, traz uma dose vital de carisma e lealdade, servindo como o contraponto saudável à espiral descendente de Kerr. O elenco ainda inclui lutadores reais como Bas Rutten, que emprestam uma camada adicional de veracidade ao universo retratado.
Direção e Fotografia: A Estética da Crueza
A direção de Benny Safdie é a alma do filme. Seu estilo “safdiano” – conhecido por filmes como Good Time e Uncut Gems – é plenamente aplicado aqui, criando uma sensação constante de ansiedade e desconforto. A opção de filmar em película 16 mm confere uma textura granulada e suja, aproximando a obra de um registro de época ou de um documentário investigativo.
A câmera, quase sempre na mão, invade espaços claustrofóbicos – vestiários suados, banheiros apertados, quartos de hotel impessoais – como um espectador indesejado. Safdie frequentemente utiliza espelhos e vidros para fragmentar a imagem, uma escolha de mise-en-scène genial que reflete visualmente a psique quebrada de Kerr. As lutas, diferentemente do que se poderia esperar, não são coreografias espetaculares. Elas são filmadas de forma bruta, com golpes secos e uma trilha sonora jazzística ansiosa que destaca o drama em vez do entretenimento. É uma escolha ousada que pode frustrar fãs de ação, mas que serve perfeitamente ao propósito do diretor: mostrar a luta como um trabalho sujo e doloroso, e não como um espetáculo glorioso.
Contexto Temático: O Vazio por Trás do Mito
Coração de Lutador vai muito além das lutas para abordar temas universais e profundos. O filme é um estudo sobre vulnerabilidade e performance. Questiona o que é autêntico em um homem que é, ao mesmo tempo, um atleta de elite e um viciado em substâncias que alteram sua percepção da realidade. A dicotomia entre o natural e o artificial perpassa toda a narrativa: os músculos reais versus os analgésicos sintéticos; o amor genuíno versus a dependência tóxica; a glória efêmera versus a dor permanente.
A moralidade também está em jogo. O filme explora as escolhas éticas de Kerr e de Dawn, sem julgá-las de forma simplista. Ele é egoísta por perseguir sua carreira? Ela é vilã por não suportar o fardo de amparar seu colosso? Safdie deixa essas questões em aberto, forçando o espectador a confrontar sua própria moralidade. Por fim, a obra é um retrato potente da frustração e da perda. A perda da juventude, da saúde, de relacionamentos e do controle sobre a própria vida. O título original, The Smashing Machine, é irônico: a máquina por excelência é justamente aquela que não consegue ser consertada.
O Preço da Carnificina
Coração de Lutador não é um filme fácil ou agradável. É uma experiência desgastante, às vezes arrastada, que exige paciência e entrega do espectador. Sua narrativa pode ser criticada por sua falta de foco e por não aprofundar suficientemente seus temas, mas é inegável o poder de suas realizações técnicas e, sobretudo, de suas atuações. Dwayne Johnson e Emily Blunt entregam trabalhos de intensidade rara, transformando o filme em um marco em suas carreiras.
Benny Safdie solidifica sua voz única no cinema, recusando-se a fazer concessões e optando por um retrato cru e desglamourizado de um mito esportivo. O filme triunfa não quando os punhos voam, mas quando a máquina para de funcionar e nos é permitido ver as engrenagens quebradas e o operador perdido dentro dela. É um copo meio vazio sobre a condição humana, e sua força reside justamente em não ter medo de mostrar a sede que permanece.
Nota IMDb: 8.0/10
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