O documentário A Vizinha Perfeita (originalmente The Perfect Neighbor), dirigido com precisão cirúrgica por Geeta Gandbhir, não é apenas mais um título na vasta biblioteca de true crime da Netflix. É uma experiência visceral e profundamente perturbadora que transcende a crônica criminal para se tornar um estudo sociológico sobre o medo, o preconceito racial e a perigosa ambiguidade da lei “Stand Your Ground” (Defenda Seu Território) na Flórida.
A narrativa se desenrola a partir de um incidente banal, mas que rapidamente escala para a tragédia: a morte de Ajike “AJ” Owens (a vítima), uma mãe negra de quatro filhos, baleada por sua vizinha, Susan Lorincz (a assassina), uma mulher branca que se sentia constantemente ameaçada pela presença das crianças brincando em sua vizinhança em Ocala, Flórida. O que torna a obra de Gandbhir tão impactante é a sua decisão estilística de construir a maior parte da história através de imagens de câmeras corporais da polícia (bodycam), gravações de chamadas para o 911 e depoimentos de pessoas reais envolvidas.
Esta escolha de produção é, simultaneamente, a maior virtude e o maior defeito da obra. A virtude reside na autenticidade inegável e no senso de imediatismo que a câmera policial oferece. Somos jogados diretamente no caos e na dor do momento, testemunhando a chegada das autoridades, a incredulidade dos vizinhos e o desespero da família de Owens. O uso da bodycam remove qualquer filtro de dramatização, forçando o espectador a confrontar a realidade nua e crua da violência.
No entanto, o defeito é a frieza calculada que essa abordagem impõe. Ao focar nas imagens de arquivo e nos procedimentos legais, o documentário corre o risco de desumanizar as vítimas, transformando a dor em espetáculo processual. A ausência de um aprofundamento mais tradicional nas vidas de Ajike Owens e seus filhos antes da tragédia é uma omissão sentida, embora a diretora pareça ter feito essa escolha para evitar o melodrama e manter o foco na crítica sistêmica.
O Elenco da Realidade e a Força das Atuações
Em um documentário, o “elenco” é composto pelas pessoas reais cujas vidas são examinadas, e suas “atuações” são os seus depoimentos e a forma como suas emoções são capturadas.
Susan Lorincz (A Vizinha): Embora Lorincz não seja o foco central, sua presença é sentida em cada frame. As gravações de suas chamadas incessantes para a polícia, queixando-se das crianças, pintam um retrato de alguém consumido pelo medo e por um senso de propriedade exagerado sobre o espaço público. A virtude aqui é a forma como o documentário usa as próprias palavras de Lorincz para expor seu preconceito e sua mentalidade de “fortaleza”, que é a base da lei Stand Your Ground.
Ajike Owens (A Vítima): A ausência de Owens é a presença mais forte. Ela é representada pela dor de sua família e pela luta por justiça. A atuação mais comovente e central é a de Pamela Dias (Mãe de Ajike Owens), cuja dignidade e determinação em buscar a responsabilização de Lorincz se tornam o motor emocional do filme. Pamela Dias, junto com os filhos de Ajike, Afrika Owens, Isaac Owens, Israel Owens e Titus Owens, oferecem a perspectiva humana essencial, transformando o caso em uma causa.
A virtude da direção de Gandbhir está em dar espaço para a família, permitindo que a sua dor se manifeste sem ser explorada. O Chefe de Polícia de Ocala, Michael Balken, e o Promotor Estadual Bill Gladson também aparecem, representando as instituições que lutam para navegar na complexidade legal e moral do caso, com suas falas servindo como contraponto burocrático à tragédia humana.
Narrativa, Temática e a Lei do Abismo
A narrativa de A Vizinha Perfeita é construída como um thriller de tribunal invertido. Em vez de nos perguntar “quem matou?”, o filme nos pergunta: “como a lei permitirá que isso aconteça?”. A estrutura é deliberadamente fragmentada, usando os vídeos da bodycam como capítulos que nos levam à inevitabilidade do desfecho fatal.
O Contexto Temático é o coração pulsante do documentário, centrado em três pilares:
1. Poder e Preconceito: O conflito é claramente racial. O documentário sugere que a percepção de ameaça de Lorincz era amplificada pelo preconceito contra Ajike Owens e seus filhos. A lei “Stand Your Ground” é apresentada como uma ferramenta que confere poder desproporcional a indivíduos que se sentem ameaçados, muitas vezes com resultados letais em disputas raciais.
2. Moralidade vs. Legalidade: A grande questão moral levantada é se é justo que alguém possa tirar uma vida e alegar autodefesa em uma situação que começou com um desentendimento trivial. O documentário expõe a falha da interpretação legal em conciliar a moralidade de uma perda injusta com a letra fria da lei, que protege o uso da força letal em nome da “segurança”. Susan Lorincz, ao se escudar na lei “Stand Your Ground”, errou ao acreditar que ela a protegeria de uma condenação por homicídio.
3. O Declínio da Tradição Comunitária: O filme também é um lamento pela perda da tradição da vizinhança. O que antes seria resolvido com uma conversa ou um pedido de desculpas se transforma em uma guerra de atritos, alimentada por chamadas policiais e o isolamento social. A modernidade da vigilância (a bodycam) e a lei de autodefesa são os catalisadores que destroem o tecido social.
Um defeito da narrativa é a sua dependência excessiva do conhecimento prévio do público sobre o caso. Embora a abordagem minimalista seja poderosa, em alguns momentos, a complexidade legal da Flórida poderia ter sido mais didaticamente explorada para um público internacional.
Direção e Fotografia: O Olhar Frio da Bodycam
A Direção de Geeta Gandbhir é marcada pela contenção e pelo respeito. Ela evita a exploração sensacionalista, focando-se na documentação. A virtude de sua direção é a capacidade de extrair tensão e drama de imagens brutas e não-cinematográficas.
A Fotografia (ou, mais precisamente, a estética visual) é dominada pelo granulado e pelas cores dessaturadas das câmeras corporais. Este estilo não é uma escolha estética, mas uma imposição da fonte. A virtude visual é que a imperfeição da imagem reforça a sensação de realidade. Os momentos de flashback ou as entrevistas com a família, filmadas com uma câmera mais tradicional, oferecem um contraste visual caloroso e humano, sublinhando a diferença entre a frieza do evento e a vitalidade da vida perdida.
A Produção é enxuta e eficaz, utilizando a montagem para criar um ritmo tenso. A virtude da montagem é a forma como ela intercala as chamadas de Lorincz, os vídeos da polícia e os depoimentos, construindo um arco de tensão crescente.
Um Alerta Necessário
A Vizinha Perfeita é um documentário essencial, um soco no estômago que nos força a examinar as fissuras da sociedade americana, onde o direito de se sentir seguro pode ser distorcido para justificar o preconceito e a violência. Não é uma obra que oferece conforto ou catarse, mas sim uma análise sombria e necessária sobre como a lei pode ser distorcida e, no final, aplicada. A condenação de Susan Lorincz a 25 anos de prisão por homicídio não apaziguou a dor da família de Ajike Owens, mas marcou um ponto final legal. A tragédia, contada através do olhar frio da bodycam, é um poderoso alerta sobre os perigos da polarização e da interpretação equivocada da autodefesa.
Nota IMDb: 7.1/10
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