Em um futuro onde a realidade se fundiu com o espetáculo, a sobrevivência é o último reality show. Edgar Wright, o mestre da montagem frenética e do humor ácido, mergulha na distopia de Stephen King com O Sobrevivente (2025), entregando uma releitura que é menos ação bombástica dos anos 80 e mais um comentário social cortante sobre a nossa obsessão por telas e violência. Prepare-se para uma caçada que não é apenas sobre correr, mas sobre o que perdemos ao assistir.
A Caçada Reinventada: De Schwarzenegger ao Cinismo de Glen Powell
O filme original de 1987, estrelado por Arnold Schwarzenegger, era um produto inegável de sua época: um filme de ação exagerado, com um herói musculoso e frases de efeito, que usava a premissa de Stephen King (escrito sob o pseudônimo de Richard Bachman) como um trampolim para a sátira política e a violência estilizada. A versão de Paul Michael Glaser era divertida, mas se afastava significativamente do tom sombrio e desesperador do romance. O filme de 87 era um espetáculo pop que, apesar de suas críticas, parecia se deleitar na própria violência que satirizava.
A versão de 2025, dirigida por Edgar Wright e estrelada por Glen Powell como Ben Richards, é uma correção de curso brutal. Wright, conhecido por sua “Trilogia de Sangue e Sorvete” e por filmes como Em Ritmo de Fuga, traz sua assinatura visual inconfundível, mas a aplica com uma seriedade surpreendente. O resultado é um filme que honra a fonte literária ao mesmo tempo que dialoga com a cultura de reality shows e streamings do século XXI. O humor negro, marca registrada de Wright, está presente, mas é mais sutil, mais cínico, servindo como um tempero amargo para a distopia, e não como o prato principal.
A principal diferença reside no protagonista. O Ben Richards de Schwarzenegger era um herói de ação pronto para a luta, um ex-policial injustiçado com a força de um tanque. O Ben Richards de Glen Powell é um homem comum, um trabalhador braçal (um “blacklisted laborer”) forçado a entrar no jogo para salvar sua filha doente. Powell entrega uma performance que equilibra o desespero e a inteligência, tornando a jornada de Richards muito mais visceral e identificável. A sua luta não é apenas física, mas uma batalha de inteligência contra um sistema que o subestima. O filme de Wright nos faz sentir a claustrofobia da caçada, o peso da decisão de Richards, algo que a versão de 87, com sua coreografia de luta exagerada, nunca conseguiu.
Elenco e Atuações: O Charme Letal e a Vulnerabilidade
O elenco de O Sobrevivente (2025) é um dos seus pontos mais fortes, com Wright acertando na escolha de atores que conseguem transitar entre o carisma e a ameaça.
Glen Powell como Ben Richards: Powell se afasta do arquétipo de herói de ação para construir um protagonista vulnerável, mas astuto. Sua atuação é marcada pela tensão constante, e a câmera de Wright usa isso a seu favor, focando em seus olhos e reações em momentos-chave. A virtude de sua atuação é a humanidade que ele injeta no papel, transformando a caçada em uma luta pessoal e não apenas em um espetáculo de ação.
Josh Brolin como Dan Killian: Brolin assume o papel que era de Richard Dawson no original, o produtor do reality show “O Sobrevivente”. Killian é o arquiteto do circo distópico, e Brolin o interpreta com um charme letal. Ele não é um vilão caricato, mas um empresário frio e calculista, cuja maior arma é a capacidade de manipular a audiência e os participantes com um sorriso. A frieza de Brolin é um defeito da narrativa para quem esperava a sátira escrachada do original, mas é uma virtude para o tom mais sombrio e realista que Wright busca.
Michael Cera como Elton Parrakis: A escolha de Cera para o papel de Elton Parrakis, um jovem rebelde que auxilia Richards, é um toque de gênio de Wright. Parrakis, no livro, é um personagem menor, mas aqui ele ganha vida com a peculiaridade e o timing cômico de Cera. Ele funciona como o alívio cômico necessário, mas também como o elo de Richards com a resistência clandestina. A virtude de Cera é a forma como ele subverte a expectativa do público, transformando o que poderia ser um papel unidimensional em um contraponto irônico à seriedade de Powell. O defeito, se houver, é que sua presença, embora bem-vinda, por vezes ameaça desviar o foco da tensão central da caçada, lembrando demais o estilo mais leve de Scott Pilgrim. No entanto, sua dinâmica com Powell é um dos pontos altos da narrativa.
Direção e Fotografia: O Ritmo Frenético e a Estética do Espetáculo
A direção de Edgar Wright é, como esperado, um espetáculo de ritmo. O filme é montado com a precisão de um relógio suíço, com cortes rápidos e transições visuais que mantêm a adrenalina alta. No entanto, o que surpreende é como Wright usa essa técnica não apenas para a ação, mas para sublinhar o tema central: a onipresença da mídia.
Virtude da Produção: A fotografia, é clinicamente limpa e saturada, contrastando a sujeira da distopia com o brilho artificial dos estúdios de TV. Essa estética visualmente impressionante serve para destacar a artificialidade do espetáculo da morte. Um exemplo específico é a forma como as cenas de perseguição são intercaladas com gráficos de audiência e comentários de streamers fictícios, transformando o espectador em cúmplice da violência. Há uma sequência particularmente memorável onde Richards se esconde em um esgoto, e a câmera o filma com um verde doentio, que é subitamente interrompido por um pop-up colorido na tela, mostrando a pontuação do jogo, um lembrete visual constante da mercantilização de seu sofrimento.
Defeito da Produção: O ritmo implacável de Wright, que é uma virtude em seus filmes de comédia de ação, pode ser um defeito aqui. Em alguns momentos, a necessidade de manter a energia alta sacrifica o desenvolvimento mais lento e aprofundado dos personagens secundários, que no livro de King tinham um papel mais significativo na jornada de Richards. A complexidade da distopia é, por vezes, simplificada em prol da próxima sequência de ação estilizada. A subtrama de Richards com sua esposa, por exemplo, é tratada com uma brevidade que beira o clichê, apressando a motivação emocional do protagonista.
Contexto Temático: Moralidade, Capitalismo e a Audiência Cúmplice
O tema central de O Sobrevivente (2025) é a exploração da moralidade em um sistema capitalista levado ao extremo. O filme de 1987 satirizava a TV a cabo e a cultura de celebridades; a versão de 2025 mira no streaming, na cultura de cancelamento e na monetização da miséria humana.
Tradição vs. Modernidade: A comparação com o original é inevitável. O filme de 1987 era uma crítica à tradição da TV aberta e sua hipocrisia. O de 2025 é uma crítica à modernidade do consumo de conteúdo sob demanda, onde a linha entre entretenimento e tragédia é totalmente apagada. O reality show não é mais apenas um programa de TV; é o motor econômico e moral da sociedade. A distopia de Wright é construída sobre a desigualdade social exacerbada, onde a única chance de ascensão social para os marginalizados é se tornarem entretenimento para a elite.
O filme explora a ideia de poder através da lente da audiência. Killian (Brolin) detém o poder de vida e morte, mas esse poder é delegado pela audiência que assiste. O filme sugere que a verdadeira distopia não é o governo totalitário, mas a nossa própria complacência e sede por espetáculo. Richards se torna um símbolo de resistência não por ser um herói, mas por forçar a audiência a olhar para o espelho. A moralidade do espectador é posta à prova a cada cena, e a genialidade de Wright é nos fazer sentir desconfortáveis com o nosso próprio prazer em assistir à caçada.
Comparativo: 1987 vs. 2025
| Elemento | O Sobrevivente (1987) | O Sobrevivente (2025) |
| Tom | Sátira de ação exagerada | Thriller distópico sombrio e cínico |
| Protagonista | Arnold Schwarzenegger (Herói de Ação) | Glen Powell (Homem Comum Astuto) |
| Vilão | Richard Dawson (Caricato) | Josh Brolin (Produtor Frio e Calculista) |
| Foco Temático | Crítica à TV e celebridades | Crítica ao Streaming e monetização da miséria |
| Estilo de Direção | Ação direta dos anos 80 | Montagem frenética e visual estilizado de Edgar Wright |
O Preço da Audiência
O Sobrevivente (2025) não é apenas um remake; é uma recontextualização. Edgar Wright conseguiu a proeza de pegar um clássico cult e injetar-lhe uma relevância contemporânea, voltando ao cerne sombrio do romance de Stephen King. O filme é um soco no estômago, um lembrete de que, em nossa era de consumo de conteúdo incessante, todos nós somos, de alguma forma, participantes ou espectadores cúmplices do espetáculo da dor alheia. É um filme que, apesar de alguns sacrifícios narrativos em prol do ritmo, ressoa com uma urgência que o original, em sua leveza, não alcançou. É uma obra que questiona o preço que estamos dispostos a pagar pelo nosso entretenimento, e a resposta, na tela de Wright, é assustadora.
Nota IMDb: 6.7/10
E aí, o que achou do Review? Já assistiu O Sobrevivente (2025)? Compartilhe nos comentários!